sexta-feira, março 16, 2007

Ana vai doar parte do seu próprio fígado para salvar o filho David


Carlos Lopes/PÚBLICO (arquivo)
Mãe e bebé de oito meses são internados hoje nos Hospitais da Universidade de CoimbraAna vai doar parte do seu próprio fígado para salvar o filho David
16.03.2007 - 08h23 Alexandra Campos, Catarina Gomes.
O transplante de fígado com dador vivo é uma intervenção muito complexa e demorada

É um processo extremamente complexo e moroso. Os potenciais dadores têm que ser muito bem estudados. É necessário obedecer a muitos critérios de rigor e fazer um estudo exaustivo das condições anatómicas do fígado, através de exames de imagiologia, como TAC, ressonâncias magnéticas, explica Linhares Furtado.
Primeiro remove-se o fígado doente e colhe-se a parte do fígado a transplantar. Só a colheita de um lóbulo direito do fígado pode demorar 10 a 12 horas, diz o médico. Habitualmente retira-se entre 40 a 50 por cento do fígado que acabará por regenerar-se (as células multiplicam-se) e ficar quase com o tamanho inicial, poucas semanas depois.Para colocar o enxerto no receptor fazem-se ligações entre os vasos e o canal biliar do doente e os do novo fígado. A implantação da parte do fígado demora entre oito e 12 horas. Quando é retirada a secção de fígado ao dador, o receptor já está preparado para o receber. Há ligações arteriais, venosas e biliares e como as estruturas das crianças são muito fininhas é necessário usar lupas e microscópios, explica Linhares Furtado. A taxa de sobrevida imediata dos receptores (até ao primeiro ano de vida) é da ordem dos 85 por cento, na média europeia. Os HUC estão "ligeiramente acima desta média". A.C. a David está instalado na aranha. "Brinca, sorri, mama bem e quem olha para ele pensa que é um bebé saudável." Não sabendo, nem se desconfia que mãe e filho são hoje internados nos Hospitais da Universidade de Coimbra (HUC) e que Ana Antunes vai doar parte do seu fígado à criança. Sem tempo para ficar em lista de espera por um órgão de um dador morto - David sofre de cirrose -, Ana, de 23 anos, diz: "Não tenho medo, sei o risco que corro, não penso nisso." Operária fabril de Alqueidão de Santo Amaro, em Ferreira de Zêzere, vai ter que ficar dois meses em repouso absoluto. Nessa altura será o pai, que é servente, quem deixará de trabalhar para tomar conta de David, de oito meses, primeiro e único filho do casal.O caso de David não é inédito. Desde 2001 que se fazem transplantes hepáticos pediátricos com dadores vivos nos HUC, em colaboração com o Hospital Pediátrico de Coimbra. Este será já o 18.º. E actualmente há mais nove crianças a aguardar por um transplante hepático em Coimbra. É uma situação excepcional que decorre da circunstância de todas elas serem do grupo sanguíneo O, o que torna mais difícil encontrar um fígado compatível. É que só em cerca de 40 por cento dos casos os pais poderão dar parte do fígado aos filhos, explica Linhares Furtado, o cirurgião que arrancou com o programa de transplante hepático pediátrico nos HUC em 1994, na altura com órgãos de dadores cadáveres.Para além da dificuldade da compatibilidade, os dadores "têm de ter muita coragem", diz Vítor Martins, da Hepaturix, Associação Nacional das Crianças e Jovens Transplantados ou com Doenças Hepáticas criada em 2006. Com mais duas filhas, ele lembra-se de ter atravessado um terrível período de angústia, quando, em 2004, o filho mais novo, com três meses, esteve em perigo de sofrer colapso hepático: "Queria salvar o meu filho e tinha medo de perder a minha mulher." Porque o risco de vida do dador existe, ainda que seja muito reduzido. Se for retirado o lóbulo direito do fígado, é de dois por cento, se for o esquerdo, é um por cento, explica Linhares Furtado.Desde então, no total, nos HUC já se realizaram 130 transplantes hepáticos pediátricos. O primeiro transplante com dador vivo foi efectuado em 2001, num "menino actualmente com seis ou sete anos", lembra o cirurgião - que se reformou em 2003, deixando o programa nas mãos do seu filho, Emanuel Furtado. E sem conseguir o que sempre reivindicara, uma equipa de seis cirurgiões em exclusividade. O problema é que "nunca houve uma unidade materialmente estabelecida, o programa de transplante pediátrico era "apenas um pequeno sector do Serviço de Urologia". "De início, tinha uma cama, depois duas... A certa altura, só consegui aumentar o número diminuindo o tamanho das camas..."O regresso do médicoMas a atenção da opinião pública para esta realidade apenas foi despertada no início deste ano, depois de Emanuel Furtado, cansado com a falta de condições e de investimento no programa, ter pedido licença sem vencimento. E, sem ele, cirurgião principal e responsável pela divisão do fígado, o programa não pôde continuar. "As estatísticas de transplante hepático pediátrico em Portugal eram das melhores do mundo. E [em 2006], num só ano, morreram duas crianças. O doutor Emanuel estava desgastado", explica Vítor Martins. Nessa altura, uma menina açoriana, Carlota, chegou a ser enviada de urgência num Falcon da Força Aérea para o Hospital de La Paz, em Madrid, porque a equipa estava parada. O pai acabou, porém, por não lhe poder doar uma parte do fígado e Carlota teve de regressar a Coimbra, onde ficou à espera de um órgão compatível. A polémica desencadeada com a paragem do programa fez com que as autoridades de saúde prometessem dar mais meios à equipa de Coimbra e Emanuel Furtado regressou ao trabalho em Janeiro. Carlota foi operada por ele há cerca de duas semanas, com sucesso. O país acordou para a importância do trabalho da equipa dos HUC no início deste ano, mas em 2004 a sua actividade passava tão despercebida a nível nacional que Vítor Martins ainda admitiu a hipótese de levar o filho ao estrangeiro para ser receber um transplante (o que lhe custaria cerca de 200 mil euros). Uma amiga patologista encaminhou-o para um dos maiores especialistas franceses da área, Olivier Bernard, que acabaria por lhe dizer que era "uma asneira ir a Paris", porque em Coimbra havia um dos "centros mais prestigiados da Europa".