terça-feira, novembro 28, 2006

Bento XVI em Ancara para falar aos ortodoxos e convencer o islão

Visita do Papa à Turquia
Bento XVI em Ancara para falar aos ortodoxos e convencer o islão 28.11.2006 - 08h11
Jorge Almeida Fernandes (PÚBLICO)


O Papa Bento XVI chega hoje à Turquia para uma visita de quatro dias, inicialmente planeada para restabelecer o diálogo entre o Vaticano e o Patriarcado ortodoxo de Constantinopla (Istambul) e que se transformou num tenso "episódio da História das relações entre o islão e o Ocidente cristão".
O Papa defronta-se com a desconfiança de islamistas, laicistas e ainda com ameaças da extrema-direita, que levaram o Governo a decretar medidas de segurança extraordinárias.Bento XVI desembarca em Ancara ao meio-dia, encontrando-se durante cerca de meia hora na sala dos VIP do aeroporto, com o primeiro-ministro, Recep Tayyp Erdogan, que o não tencionava receber, a pretexto da sua presença na cimeira da NATO. Foi o compromisso possível, que o porta-voz do Vaticano, padre Federico Lombardi, qualificou ontem de "sinal muito positivo e um gesto de atenção para com a Santa Sé, muito apreciado". O islamista moderado Erdogan criticou as posições expressas pelo Papa na sua conferência de Ratisbona (12 de Setembro), que considerou ofensivas - pela associação entre fé e violência no islão. A querela foi envenenada pela crescente oposição à adesão da Turquia à UE em muitos países europeus. E, antes de ser Papa, o cardeal Ratzinger criticou essa adesão. Os equívocosEm ano pré-eleitoral (presidenciais e legislativas em 2007), Erdogan teme o agravamento das tensões internas e, obviamente, a exploração da visita papal pelos seus rivais da corrente islamista radical. Se a oposição ao Papa é fomentada por uma minoria, domina no país o sentimento genérico de que ele é "antiturco". Bento XVI começará por visitar, como é tradição, o mausoléu de Atatürk, "pai da Pátria" e da Turquia laica, e a seguir encontra-se com o Presidente da República, Necdet Sezer. Segue-se um encontro privado com o Grande Mufti, Ali Bardakoglu, máxima autoridade religiosa do Estado. É importante, pois um dos temas a abordar por Bento XVI é a discriminação dos católicos turcos. O Papa seguirá depois para Éfeso e Istambul, onde tornará pública, com o patriarca Bartolomeu I, uma declaração comum sobre a vontade de reconciliação entre católicos e ortodoxos."Depois de tudo o que se passou, a visita do Papa é um passo em frente", declarou ontem Bardakoglu. Mas "não será um gesto suficiente para abrir a porta do diálogo e reparar o rancor pelas infelizes declarações" [de Ratisbona]. Prefere, porém, "olhar para o futuro em vez de abrir polémicas antigas". No domingo, Bento XVI tentou desfazer os equívocos, enviando uma "cordial saudação" ao "querido povo turco", cuja história e cultura declarou admirar. Outro sinal, de grande importância simbólica, foi a decisão de visitar, na quinta-feira, a Mesquita Azul, de Istambul.Diplomacia vaticanaA primeira visita que Bento XVI faz fora da Europa é exactamente a um país islâmico, o que em si tem significado. No entanto, o objectivo central era a aproximação da Igreja Ortodoxa, posta em causa durante o pontificado de João Paulo II e, ainda, os direitos de liberdade religiosa da pequena minoria católica. Alterado este quadro, "islão, ortodoxia e Europa" misturam-se na viagem, assinala Henri Tinq, especialista de religião do Monde. Por isso, o Vaticano procede a um esclarecimento da sua posição sobre as relações entre Ancara e a UE. "Não somos contra a pertença da Turquia à UE", declarou no domingo o porta-voz, Federico Lombardi. Se a Turquia "preencher as condições para se tornar membro, por que não"?Em Istambul, o porta-voz do Vaticano na Turquia, monsenhor Georges Marovitch, foi mais preciso. "Neste momento, não se pode ou deve admitir que a Turquia esteja preparada para integrar a UE, mas dar um "não" definitivo seria um grande erro para a Europa." Acrescentou, citado pelo EUobserver.com: "Temos de reconhecer o medo da Turquia na Europa. Mas este medo existe porque muitos europeus não conhecem bem a Turquia." Uma ruptura seria "uma perda histórica para a Europa". E aproveitou para denunciar a recente lei francesa sobre o "genocídio arménio" como um "imenso erro". Do lado turco, não se ouvem apenas considerações críticas. Passando além da "infeliz mensagem" de Ratisbona, "esta visita é uma oportunidade para superar os mal-entendidos entre muçulmanos e cristãos", declarou ao diário Zaman o ministro dos Negócios Estrangeiros, o islamista Abdullah Gul. Ou, segundo o ministro da Justiça, Cemil Cicek, será um "marco na relações entre os dois mundos". E uma oportunidade para a Turquia demonstrar ao exterior que é terra de "tolerância e de hospitalidade". Talvez por isso, para lá da segurança e das manifestações, esta seja um visita de alto risco, num momento crítico, em que não pode haver gaffes, de parte a parte. As palavras e os actos serão lidos à lupa. Como pano de fundo, anota Sergio Romano no Corriere della Sera, estão questões a que o Papa não pode responder: "a imigração muçulmana na Europa, o "choque de civilizações", a relação entre islâmicos moderados e fanáticos, o ingresso da Turquia na UE". O que faz dela o referido "episódio da História das relações entre o islão e o Ocidente cristão" - ou seja, é a visita que Bento XVI não projectou fazer.